Arroz adquire resistência ao frio por herança epigenética

Experimento revela que o arroz pode “aprender” a ar baixas temperaturas — e transmitir essa adaptação sem mutação genética

26.05.2025 | 13:44 (UTC -3)
Revista Cultivar

Uma linhagem de arroz sensível ao frio desenvolveu resistência após três gerações expostas a temperaturas baixas durante o estágio meótico. Essa resistência persistiu por pelo menos cinco gerações, mesmo sem nova exposição ao frio. O fenômeno se explica por uma alteração epigenética estável: a hipometilação do gene ACT1. Não há mutação na sequência de DNA. A expressão do gene, porém, torna-se insensível ao frio.

A descoberta rompe com dogmas. A herança de características adquiridas, proposta pelo francês Jean-Baptiste Lamarck em 1802, foi descartada pela genética clássica. Mas mecanismos epigenéticos trazem a ideia de volta à discussão evolutiva.

No caso do arroz, a exposição repetida ao frio levou à formação de um epialelo, sem alteração na sequência, mas com mudança duradoura na expressão do gene.

A pesquisa partiu da variedade KenDao8, altamente sensível ao frio. Os cientistas submeteram as plantas ao frio durante a meiose, estágio crítico para a fertilidade do grão.

A seleção de panículas com maior produção de sementes deu origem à linhagem KD8-3C, resistente ao frio. A descendência manteve o fenótipo mesmo sem novas exposições às baixas temperaturas.

<b>(A)</b> esquema do tratamento pelo frio durante o estágio meiótico em arroz; <b>(B)</b> triagem para aquisição de tolerância ao frio geração por geração - N, temperatura normal; C, estresse pelo frio; 1°C–4°C, número de gerações submetidas a estresse pelo frio; <b>(C)</b> razão de pegamento de sementes de KD8 e sua progênie, conforme demonstrado em (B) em temperaturas normais e frias. A seta vermelha no perfil de KD8-2°C indica a panícula da qual suas autoprogênies foram utilizadas para posterior tratamento pelo frio
(A) esquema do tratamento pelo frio durante o estágio meiótico em arroz; (B) triagem para aquisição de tolerância ao frio geração por geração - N, temperatura normal; C, estresse pelo frio; 1°C–4°C, número de gerações submetidas a estresse pelo frio; (C) razão de pegamento de sementes de KD8 e sua progênie, conforme demonstrado em (B) em temperaturas normais e frias. A seta vermelha no perfil de KD8-2°C indica a panícula da qual suas autoprogênies foram utilizadas para posterior tratamento pelo frio

Sequenciamento mostrou que as linhagens KD8-3C e a original compartilham quase todo o genoma. Apenas uma diferença estrutural sem relevância estatística foi observada. O gene ACT1, porém, apresentou hipometilação numa região de 37 pares de base, próxima ao seu início de transcrição.

ACT1 codifica uma proteína da família AGP1, que se ancora à membrana e participa da resposta ao frio. Em situação normal, o frio suprime a expressão de ACT1. Mas a hipometilação impede essa repressão. O gene continua ativo, permitindo o desenvolvimento dos grãos mesmo com temperatura baixa.

A edição epigenética do genoma confirmou a relação causal. Cientistas usaram a ferramenta SunTag para desmetilar ACT1 em linhagens sensíveis.

As plantas editadas mantiveram a expressão do gene sob frio e aumentaram a produtividade. O experimento inverso também funcionou: ao remeter ACT1 à metilação original, as plantas voltaram a ser sensíveis.

A metilação afeta a interação com o fator de transcrição Dof1. Em plantas com ACT1 hipermetilado, a proteína se liga com menor afinidade. Com hipometilação, Dof1 se fixa com força e ativa a transcrição do gene. O próprio Dof1 é ativado pelo frio, ampliando o efeito.

A hipometilação não é aleatória. Ela surge quando o frio reduz a expressão das metiltransferases MET1b e CMT3, que normalmente reforçam a metilação. Sem essas enzimas, e sem interferência de pequenos RNAs, o padrão epigenético muda e se estabiliza com as gerações.

<b>(D) </b>fertilidade do pólen (acima) e grãos preenchidos ou vazios (abaixo) de panículas representativas de plantas KD8-4N e KD8-4C cultivadas em temperaturas normais e frias. Barras de escala, 100 μm (pólen) e 1 cm (grão); <b>(E)</b> proporção de germinação das linhagens endogâmicas KD8-4N e KD8-4C ao longo das cinco gerações sucessivas sem estresse por frio, em temperaturas normais e frias -- 1N–5N indicam o número de gerações em temperatura normal
(D) fertilidade do pólen (acima) e grãos preenchidos ou vazios (abaixo) de panículas representativas de plantas KD8-4N e KD8-4C cultivadas em temperaturas normais e frias. Barras de escala, 100 μm (pólen) e 1 cm (grão); (E) proporção de germinação das linhagens endogâmicas KD8-4N e KD8-4C ao longo das cinco gerações sucessivas sem estresse por frio, em temperaturas normais e frias -- 1N–5N indicam o número de gerações em temperatura normal

A equipe avaliou 131 variedades de arroz de três regiões da China. A maioria das plantas do sul, onde o frio é raro, mantinha ACT1 hipermetilado. No norte, mais frio, predominavam hipometiladas. A seleção natural pode ter fixado essas diferenças, favorecendo plantas com maior resistência.

O estudo propõe uma revisão das ideias clássicas da hereditariedade. O ambiente, ao moldar o epigenoma, interfere na evolução de maneira mais rápida que mutações aleatórias. As adaptações, antes consideradas lentas e genéticas, podem surgir de forma acelerada e ser herdadas com estabilidade.

Não há resposta definitiva sobre a extensão desse mecanismo. O frio durante a meiose é apenas um entre muitos estresses ambientais. Outros genes e condições podem induzir efeitos semelhantes. A tecnologia de edição epigenética abre caminho para explorar esse potencial.

As descobertas alimentam uma pergunta antiga: e se Lamarck estivesse apenas adiantado demais para o seu tempo?

Mais informações em doi.org/10.1016/j.cell.2025.04.036

Compartilhar

Newsletter Cultivar

Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura

ar grupo whatsapp
Agritechnica 2025